ETIÓPIA

 


11 flashes sobre a história e a cultura
do Estado mais antigo do Ocidente
Ralf Rickli • rr@tropis.orgCapítulos 31 a 41 do livro O dia em que Túlio descobriu a África
com 4 das ilustrações de Paulo Stocker para a edição original
(São Paulo: Trópis, 1997 – atualmente esgotado)
 

31. A Terra do Preste João… e do Ras Tafári

32. Um planalto entre Kush e Sabá

33. Os primeiros arranha-céus do planeta

34. Aksum

35. O destino de um espião português

36. A endjera e o mistério da arca

37. A outra história da arca

38. A história de Frumêncio e Edésio

39. A mãe do trigo passa fome

40. Discretas catedrais

41. A Mãe fala nos jardins de Lalibela

 

 

31: A Terra do Preste João… e do Ras Tafári

Disseram adeus a esse lugar único, agora já quase familiar [o topo do Monte Kilimandjaro], e avançaram direto pra norte por sobre Nairóbi e as encostas frescas do Monte Quênia, por sobre planaltos férteis, e estepes, e desertos… e logo sobre novos planaltos, recortados de fundos vales. Aliás, tão recortados que se poderia chamar tudo aquilo de um mar de montanhas. Idriss anunciou:

— Eis o país que no século XX se chama Etiópia — também conhecido ao longo do tempo como Abissínia, ou Habashat, ou reino de Aksum… A história deste pedacinho da África já dava sozinha pra todo um congresso e todo um livro!

Montes, lagos e vales se sucediam, até que sobrevoaram Adis Abeba, a capital atual.

— Como vocês vêem, há construções bem modernas em Adis Abeba, que é séde da OUA (Organização da Unidade Africana). Pra quem gosta de números, a cidade tem perto de um milhão e meio de habitantes e está a 2500 metros de altitude – mas não tem muito mais de 100 anos de idade. O país teve antes outras capitais como Gondar e Roha, mas principalmente Aksum[1], sua verdadeira raiz e coração por bem uns 2 mil anos. É para Aksum que quero levar vocês.

… Enquanto não chegamos lá, vai uma curiosidade sobre a Etiópia moderna. Há uma palavra que os jovens do fim do século XX usam bastante sem saber que vem da Etiópia. Especialmente os fãs de reggae.

— ???

— Na língua daqui a palavra ras significa cabeça e também príncipe. No começo deste século o príncipe Lidj Tafári se tornou regente e herdeiro do trono etíope. Lá na América Central, na Jamaica, havia um movimento político-religioso ligado a antigas tradições que mesclam a história da Etiópia com histórias da Bíblia. Esse pessoal começou a esperar a coroação do Ras Tafári como um sinal da restauração da sorte do povos negros.

— Ras Tafári! Imaginem só! A gente pensa que isso é um estilo de penteado!

— Pois não é só…

— E o que aconteceu?

— O Ras Tafári foi mesmo coroado neguz, isto é, imperador da Etiópia, com o nome Hailé Selassié, que quer dizer “O Poder da Trindade”. Governou a Etiópia quase até sua morte em 1975. De lá pra cá o país tem vivido tempos revolucionários bastante instáveis. Mas o nome “rastafári” ficou ligado àquele movimento jamaicano, no meio do qual nasceu a música de reggae.

— E infelizmente a tal restauração não parece ter acontecido, não é?…

— Pelo menos não de um modo rápido, imediato. Mas mudanças históricas podem levar séculos acontecendo… Quem sabe o fato de vocês estarem aprendendo isto tudo não é parte dessa restauração?

Passou um pequeno arrepio pela espinha de nossos amigos, que não era de medo, era… um “arrepio de responsabilidade”. Mas logo um deles lembrou de perguntar:

— Escuta, Idriss, o pessoal de reggae não adora um deus exótico chamado Jah?

— Não tão exótico assim: é um dos nomes usado para Deus nos livros sagrados dos judeus e dos cristãos – em outras palavras, na Bíblia.

— Ué, mas eu leio a Bíblia e nunca vi esse nome!

— Você nunca viu a palavra “aleluia”?

— Claro que sim, mas ainda não vejo nenhuma relação…

— Na verdade a palavra devia ser pronunciada “alelu‑iá”, pois significa “louvai a Iáh” – ou Jah, como preferir.

— !

… Mas como é que fora daí eu nunca vi?

— Iáh é só a primeira sílaba do nome. Os judeus consideram o nome completo tão sagrado que nem pode ser pronunciado — e começaram uma tradição de dizer outra palavra no lugar: eles dizem “Adonai” ou “O Eterno”, e nas Bíblias cristãs você vê escrito “O Senhor”.

— Olhe só!

… Mas não é estranho que um movimento pela liberdade africana use um nome da Bíblia?

— Eu não falei há pouco que a história da Etiópia é toda entretecida com histórias da Bíblia?

— Verdade, falou. Mas… mas…  como?

— Não se afobe que já já nós vamos ver essas histórias mais de perto – só que primeiro vamos fazer um “tour” panorâmico pela região, pois isso vai ajudar a entender.

PARA INTERESSADOS EM APROFUNDAMENTO
(Cap. 31 a 41)

Neguz, ras: Neguz é “rei” em amárico, a principal língua etíope nos últimos séculos e até hoje. Variante antiga: negáchi. Neguza negasht  = rei de reis, isto é, imperador.

Sendo palavra oxítona, optamos pela grafia com Z (contrariamente aos dicionários) para evitar confusão com o final -us átono latino, tão comumente usado entre nós. Definitivamente, o título do imperador etíope não é uma forma refinada de “nêgo”…

Já a palavra camito-semita ras (em amárico e em árabe; em hebraico rosh) significa literalmente cabeça, designando também cabo (ponta de terra no mar) e chefe (aliás, três palavras que derivam de “caput”, que é igualmente “cabeça” em latim!).  Como sugere Diop, é ainda provável a relação entre ras e as línguas indoeuropéias, como no sânscrito hindu radja (rei e reto/real/verdadeiro), o latim rex (rei, director), o inglês right etc.

Por que onze capítulos na Etiópia:

a) De todos os Estados nacionais hoje existentes, a Etiópia é um dos mais antigos: a oeste do Irã, incluindo aí toda a Europa, é o único Estado contemporâneo de Roma que existiu ininterruptamente até nossos dias (ainda que vez por outra fragmentado), podendo assim ser chamado, sem exagero, de país mais velho do Ocidente.

Trata-se ainda de um dos primeiros países cristãos do globo, e da única região da África que viveu processos de monasticismo e de formação de feudalismo em tudo comparáveis aos da Europa. Só isso basta para mostrar o quanto tem sido insuficiente a atenção destinada a Etiópia no estudo da história mundial.

b) Parece-nos que a bibliografia brasileira sobre temas africanos concentra-se em: (1) Religiões tradicionais, principalmente a iorubá, e suas derivações; (2) Temas ligados à escravidão; (3) Política africana pós-colonial. Além desses, encontramos ainda alguma coisa sobre (4) a vertente islâmica da história africana — mas quase nada sobre sua vertente judaico-cristã original, isto é, a Etiópia. E, como dissemos, nossa intenção é complementar.

 

[1]Ou Axum, ou ainda Agsum.

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32: Um planalto entre Kush e Sabá

Deixaram Adis Abeba e logo sobrevoaram uma cidade dominada por grandes construções antigas:

— Debra Líbanos, antigo Debra Asbos, o maior dos mosteiros etíopes. O país inteiro está cheio de mosteiros, que desempenharam enorme papel na sua história.

Logo a seguir o planalto despencava em paredões imensos. Láááá no fundo, um rio:

— O Nilo Azul, chamado aqui de Abbai. Não prometi que o veríamos de novo?[1]

… Rio abaixo, vocês lembram, ficava o reino de Kush. Uma das fontes da civilização etíope é o povo kushita que vivia aqui desde tempos imemoriais.

Seguiram o profundo desfiladeiro na direção rio-acima. As encostas que não eram verticais eram todas terraceadas com muretas, provando que já haviam sido plantadas; isso acontecia, aliás, em quase todas as encostas do país.

Chegaram a uma catarata que saía de um lago.

— Eis onde começa o Nilo Azul: o Lago Tana. Não esqueçam dele, pois será personagem de histórias que ainda vou contar.

— Lá vem os seus mistérios de novo. — Idriss nem deu bola e prosseguiu:

— Mas a civilização etíope tem outra fonte além de Kush. Vou lhes mostrar.

O tapete fez uma forte curva a leste. Iam por entre fantásticos conjuntos montanhosos formados de torres de pedra quase verticais.

— Passam todos de 4000 metros de altitude. Aliás, vamos subir mais pra vocês terem uma visão de conjunto do que eu quero dizer.

O tapete subiu vertiginosamente. Viram logo à frente que o planalto acabava abrupto num “degrau” de uns dois quilômetros de altura – o equivalente a um edifício de 700 andares, se existisse algum. Pra baixo, desta vez, se estendia uma larga e ondulada planície que ia dar no mar.

Mas… seria mesmo o mar? Pois da altura em que estavam podiam ver que do outro lado desse mar havia terra. Mais exatamente: montanhas como as do lado de cá.

— É o Mar Vermelho, esclareceu Idriss. A costa do lado de cá se chama Eritréia, da palavra grega pra  vermelho (erythrós).[2]

… O outro lado é aquela ponta da Península Arábica quase abraçada pelo Chifre da África, o atual Iêmen. Desde há milênios há intenso trânsito de gente e cultura entre esses dois lados do mar, que em várias ocasiões foram partes de um só império, com a capital às vezes na Arábia, às vezes na África.

O tapete se aproximava do mar. Idrissa comandou-o pra que parasse, como um helicóptero, e mostrou:

— Aqui no estreito Bab-el-Mandab apenas 30 km separam África e Ásia. É o portão de entrada para o Mar Vermelho, que leva até as portas das civilizações mais antigas – Egito e Palestina – e de lá para Grécia, Roma e todo o mundo mediterrâneo.

… “Portão afora”, por outro lado, temos o Índico, palco do mais movimentado comércio ligando África, Pérsia, Índia, Indonésia e China, como vocês já sabem.

… Vocês já imaginaram a importância estratégica do reino que dominava este estreito?

… O nome desse reino era Sabá. Seu coração ficava lá no Iêmen, porém seu povo e cultura se espalhavam também para cá, montanhas adentro. Do casamento das heranças kushita e sabeana é que nasceu esta cultura única, a Etíope.

[1]Cap. 23.

[2]Em 1993, a Eritréia, de maioria muçulmana, se desligou mediante um plebiscito da Etiópia, da qual ora fez parte, ora foi independente no correr da história. Para atualizar-se com os acontecimentos mais recentes sugerimos pesquisar na internet!

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33: Os primeiros arranha-céus do planeta

Idriss prosseguiu:

— Durante milênios a região de Sabá, também já chamada de  “Índia Menor”, foi um dos lugares mais avançados do mundo. Vem daí boa parte da fama de um Oriente de fabulosa riqueza.

… Por um lado, tinha o que falta ao resto da Arábia: uma exuberante agricultura, apoiada pelo bom solo vulcânico e pelas chuvas de monções.[1]

… Por outro, era o grande mercado de ouro, marfim, sedas, perfumes, especiarias, ceras, peles… todos os encantos do Oriente e dos trópicos. Dêem uma olhada:

Idriss pegou de novo o Interfer, regulou-o e anunciou:

— Ano 1000 depois de Cristo, 5245 do calendário egípcio, época em que as atuais metrópoles do Ocidente, como Paris, eram ainda cidadinhas obscuras e – é preciso dizer – terrivelmente sujas.

A janela se formou, e lá estavam campos verdíssimos ponteados aqui e ali de castelos. As plantações eram todas em terraços – uma forma de proteger o solo contra a erosão, coisa que à beira do ano 2000 os agricultores do Brasil ainda custam a acreditar que é necessária. A paisagem rebrilhava de represas de onde saíam aquedutos, muitas vezes de mármore.[2]

— Dêem só uma olhada em San’aa, a capital:

— Que loucura!

Eram edifícios de cinco a dez andares. A aparência seria a de uma cidade moderna se não fosse o rico rendilhado decorativo das paredes e janelas, dando ao conjunto um ar de sonho. Tudo isso em meio a jardins cheios de flores e frutos.

— E o mais importante de San’aa não é visível daqui de cima: é o eficiente sistema de limpeza e esgotos. Coisa que salvaria a Europa das terríveis pestes que ainda a devastarão por séculos, depois deste ano 1000.

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… Vejam também Shibam, no reino vizinho de Hadramaut:

— !!!

No meio de uma área desértica se levantava uma sólida muralha cercando um vasto bloco de edifícios de 10 a 12 andares.

— E mal se sabe há quantos séculos já estão aí!

Depois de uns instantes de contemplação pasmada, Idrissa desligou o Interfer e prosseguiu:

— Quase mil anos antes de Cristo os hebreus tinham firmado seu domínio lá na Palestina, e sobre eles reinava Salomão, que ficaria célebre tanto pela riqueza como pela sabedoria.

… Ora, os hebreus eram um povo sem tradição marítima, ao contrário de seus vizinhos fenícios. Assim Salomão fez aliança com o rei fenício Hiram, da cidade de Tiro[3], e sua frota conjunta passou a navegar regularmente até Sabá.

… Foi assim que a rainha de Sabá soube da fama de Salomão e foi a Jerusalém visitá-lo – uma história que dará muito pano pra manga, pois os árabes acham que ela se chamava Belkis e vivia do lado de lá, os etíopes que se chamava Magda e vivia em Aksum – que é pra onde vamos agora.[4]

PARA INTERESSADOS EM APROFUNDAMENTO

Riqueza e desenvolvimento de Sabá: As imagens provém sobretudo das descrições de El Mas’udi (séc. X) e Ibn Batutta (séc. XIV), apud Davidson, VI, 1 (complementadas com outras fontes). A hipótese que será mencionada no cap. 37 (domínios do Egito até a Índia) é referida em E. L. Nascimento, I,1,c.

[1]Ventos que sopram no Índico em épocas regulares, metade do ano pro norte, metade pro sul.

[2]Aquedutos eram pontes por onde canais d’água abertos passavam sem perder o nível, já que não havia grandes canos. Os “Arcos da Lapa” onde hoje passa o bonde de Santa Tereza no Rio de Janeiro eram originalmente um aqueduto. Nem por isso o nome é “arqueduto”, como pensam alguns, pois deriva de “água” e não de “arcos”!

[3]Hoje Sur, no Líbano. Fenício é um nome grego que pegou para os cananeus da costa.

[4]Livros de três tradições mencionam a rainha de Sabá: a Bíblia (I Reis), que não menciona o nome; o Alcorão, que a chama de Belkis; e o Kebra Negast etíope, onde é chamada de Magda ou Makeda, conforme a fonte.

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34: Aksum

O tapete deslizou uns minutos pra norte beirando o mar, e aí virou para oeste, encarando as montanhas.

— Aksum não fica longe da costa, mas seria uma longa viagem se não pudéssemos voar: está a 2000 m de altitude, no planalto de Tigré.

… Vocês podem imaginar o que é a vida de um país onde em toda parte se encontram barreiras da altura de 2000 metros? Essa pode ser uma das razões por que a Velha Abissínia tem tido dificuldades de se adaptar ao século XX, que cultua a pressa.

— Por que Abissínia?

— Por causa dos habashan, nome árabe de uma das antigas tribos que deram origem a este povo.

… A propósito: sugiro regular o tapete pro ano 1520 dC, pois aí estará em Aksum uma pessoa curiosa de se encontrar.

Chegaram. Como era de se esperar, não faltavam palácios, igrejas e mosteiros, todos de pedra. O que mais chamava atenção, porém, era um conjunto de monumentos muito altos – podem-se chamar de estelas ou obeliscos, embora não tenham a forma de base quadrada dos obeliscos egípcios. Tinham mais era a forma de espadas de pedra com ponta redonda.

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— Como vocês vêem, são feitos de uma pedra só – são monolitos, pra quem gosta de grego. O maior tem 33 metros, a altura de um edifício de 11 andares. É o mais alto monolito conhecido na face da Terra. Infelizmente o único que chegará de pé ao século XX é aquele ali, todo entalhado de motivos decorativos sugerindo os andares de um prédio. Tem 21 metros, o equivalente a 7 andares. São um exemplo da incrível maestria etíope no trabalho com rochas duras.

— São recentes?

— Não se sabe exatamente quando foram construídos, mas foi com certeza antes de Cristo.

… Mas vamos. Vamos caminhar até a igreja Mariam Tsion, ou Santa Maria de Sião.

Havia missa solene. Como é costume nas igrejas orientais, muitos sacerdotes e acólitos, muitas roupas cerimoniais, cantos e incensos. Nas paredes, inscrições num alfabeto que nenhum de nossos amigos conhecia. Tentaram se esclarecer numa conversa porta afora.

 

— Pois esse é o próprio alfabeto etíope. As inscrições e a missa estão em gueez, a língua dos primeiros tempos do cristianismo em Aksum. Essa língua foi mudando e acabou virando o amárico, que se fala aqui hoje ao lado de algumas outras línguas. É mais ou menos como quando se dizia a missa em latim no Brasil, que fala português, que é uma língua derivada do latim.

— E a missa aqui não era em latim?

— Não, esta é uma igreja católico-ortodoxa, não católico-romana.

— Como é isso?

— É somente a igreja católica do lado ocidental da Europa que tem séde em Roma. A parte oriental tem sua chefia dividida em vários patriarcados – Constantinopla é séde da igreja grega, Antioquia da igreja síria, Alexandria da igreja egípcia ou copta, etc.

… A Igreja Etíope  é oficialmente ligada ao Patriarcado de Alexandria e só no século XX constituirá um patriarcado autônomo. Na prática porém é uma igreja independente, com seus próprios usos e costumes, e isso desde o ano 300 e pouco. Estamos em um dos primeiros países cristãos do mundo. Surpreendente, não?

— A esta altura não me surpreendo com mais nada… A idéia da África como um lugar primitivo está morta e sepultada.

Todos aplaudiram alegremente a frase de Túlio. Nisso a missa terminou. Idrissa se pôs a observar atentamente as pessoas que saíam.

— Ele deve estar aqui.

— Ele quem, Idriss? — Mas nosso amigo estava concentrado.

— Ah, só pode ser ele!

Era um senhor branco, de uns 60 e poucos anos, acompanhado da mulher – etíope -, filhos e netos. Ia passando quando ouviu um comentário qualquer de nossos amigos, e quase saltou:

— Não é possível! Terei ouvido falar…  português?

— Sim senhor! — adiantaram-se Túlio e Cristiano.

— Mas… como é possível? E de que região são os senhores? Não reconheço esse vosso acento.[1]

— Já vamos explicar, mas é um pouco complicado… O senhor não se incomodaria de dizer antes… quem é o senhor?

— Pois não, pois não! Pero de Covilhã, ao seu dispor.

— Pero de Covilhã, o agente secreto português!?

— Se o senhor quiser chamar assim…

 

Por uns instantes houve pura perplexidade. Foi Túlio quem retomou pé na situação, tomando a iniciativa de perguntar:

— Sr. Pero, há quantos anos mesmo o senhor está na Etiópia?

— Há… vejamos… há quase 30 anos. Desde 1490 e pouco.

— É, fica mesmo difícil de explicar — disseram nossos amigos consigo. — O senhor acredita que seja possível viajar no tempo? Vir de uma outra época?

— Ora, nesses meus anos de Oriente já vi tantas coisas fantásticas… Não duvido de nada.

— Pois então, Sr. Pero. A gente vem do Brasil. É uma terra a oeste do Atlântico que os portugueses começaram a colonizar faz 20 anos; isto é, depois de sua chegada aqui.

— A terra que o Rei Dom João mantinha em segredo! Então eles conseguiram! [2]

— Só que a gente vive… quase 500 anos mais tarde, entende? Virou um país com muitas cidades maiores que Lisboa, que falam todas português.

— Impressionante! E o Oriente? A Índia? Eles conseguiram?

— Faz 22 anos que Vasco da Gama chegou lá.

Idrissa interveio:

— Senhor Covilhã, dentro de poucos dias chegará aqui uma missão portuguesa, chefiada por Rodrigo de Lima e pelo Padre Francisco Álvares.

— Louvado seja Deus!

— Os senhores terão quanto tempo quiserem pra pôr as notícias em dia. Se me permite, nós gostaríamos muito de ouvir como o senhor chegou aqui e o que o senhor aprendeu da Etiópia.

— Mas como não! É uma grande satisfação! Vamos fazer uma coisa: convido-os a almoçar na minha casa, e aí posso contar com o devido vagar.

… Mas antes: já viram a igreja? É o santuário mais sagrado da Abissínia. Guarda uma relíquia…  Os padres dizem que é a verdadeira Arca da Aliança, contendo as Tábuas da Lei que Deus deu a Moisés.

— Podemos ver?

— Não, não: como nos tempos bíblicos, só há um sacerdote vivo que entra no Santo dos Santos e a vê. O que se vê em todas as igrejas são reproduções pequenas da arca, os tabots.

— Mas como…

— Senhores, permitam-me: encaminhemo-nos para minha casa. Lá eu contarei o que sei.

[1]Sotaque.

[2]Os historiadores modernos acham que o Rei Dom João II já tinha conhecimento do Brasil antes de Cabral. Alguns, como Van Sertima, acham até que foram justamente os africanos da Costa Ocidental que contaram aos portugueses e a Colombo que existiam terras do outro lado do Atlântico, pois já o teriam cruzado inúmeras vezes. Mas este não é assunto para agora…

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35: destino de um espião português

Seguiram pelas ruas de Aksum em verdadeira procissão – os viajantes do tapete misturados aos filhos e netos de Covilhã. Logo Túlio, Cristiano e Idriss tinham uma roda de crianças pelas mãos, quando não pelos ombros e cabeça. Também a professora Beatriz inventava brincadeiras, ouvia e contava histórias, ou respondia perguntas das adolescentes sobre sua vida em outra época e lugar. Logo ao chegar na casa, porém, nossos amigos cobraram do anfitrião que relatasse a sua história, enquanto a família se preparava para servir a comida.

— Foi em 1467 que saí de Portugal a mando de D. João II, eu e meu companheiro Alfonso de Paiva. Fomos escolhidos porque falávamos o árabe com perfeição.

… Nossa dupla missão era: localizar os fornecedores últimos das especiarias que chegavam através de Veneza e dos mercadores mouros[1], e conseguir informações mais exatas sobre o Reino do Preste João.

… Na verdade desde o tempo das cruzadas os soberanos e serviços secretos da Europa já sabiam que esse reino era a Etiópia – mas chegar aqui era o problema. Os mouros dominavam todos os acessos, e não gostariam de ver uma aliança entre cristãos onde eles ficassem “no recheio”. Por isso nosso disfarce.

Idrissa pensou consigo nas vantagens que há em ser do século XX, onde é possível a amizade entre muçulmanos e cristãos sempre que ambos são esclarecidos. É claro que na casa deste senhor do século XV não era conveniente revelar que ele mesmo era “mouro”.  E afinal, Covilhã não poderia se queixar, já que ele mesmo tinha andado disfarçado entre os mouros…

O relato prosseguia:

— Passamos por Barcelona, Nápoles e Rodes (na Grécia), e finalmente desembarcamos em Alexandria, onde a comunidade cristã ainda mantém seu espaço. De lá podíamos seguir por terra, desde que disfarçados – e foram anos de disfarce até chegar de novo a um território cristão: este aqui.

… Fomos ao Cairo, onde nos juntamos a uma caravana moura que ia para Áden.

— No Iêmen — esclareceu Idriss.

— Lá, devido a nossa dupla missão, Alfonso e eu nos separamos: eu tomei o rumo da Índia, ele deveria ter vindo para cá. Só Deus, porém, sabe o que lhe passou. Nunca mais soube dele, pobre Alfonso.

Idrissa lembrou que nunca ninguém mais soube dele, mas achou melhor continuar só ouvindo:

— Eu, de minha parte, cheguei ao que queria descobrir: Calicut. De lá passei por Goa e por Hormuz, porta da Pérsia, e embarquei para as costas da África, rumo ao sul.

… Aí fui de cidade em cidade até Sofala, e fiquei sabendo que era possível navegar pelo sul até o ocidente, o Mar da Guiné.

— A parte do Atlântico abraçada pela África — complementou o Dr. Guerreiro.

— Diziam, é claro, que não havia nada o que fazer por lá; que o mundo civilizado terminava em Sofala.

… Pois bem: regressei daí passo por passo até o Cairo, onde tive a felicidade de encontrar dois colegas do serviço português. Eles vinham com a mesma missão, já que havíamos partido há dois anos e não havia notícias de nós.

… Decidimos que eles levariam ao rei o relatório do que eu já havia descoberto, e eu prosseguiria em busca da terra do Preste João.

… Havia, é claro, muitos segredos a desvendar, e viajei muito, antes de chegar aqui. Fui à Arábia. Sempre passando por mouro, juntei-me às peregrinações e fui conhecer suas cidades sagradas de Medina e Meca…

— Essa história é espantosamente parecida com a de um agente inglês, Sir Richard Francis Burton, que andou revirando Índia, Arábia e África no século XIX — observou a professora Beatriz. — Burton, a propósito, foi cônsul em Santos, no Brasil e traduziu pro inglês Os Lusíadas de Camões.

Pero de Covilhã continuou:

— Depois desembarquei em Zeila…

— Na atual Somália…

— … já sabendo que seria a melhor porta para o reino do Preste João. Aí tive que exercitar minhas artes ao máximo para me aproximar deste reino ainda como mouro, e do lado de cá ser reconhecido desde o primeiro momento como cristão.

… De um modo ou de outro cheguei, no ano de 1493, e fui muito bem recebido pelo jovem neguz Iskindir. Infelizmente no ano seguinte o neguz morreu em combate. A situação política dentro do reino estava confusa, e aliás ainda está. Por sorte a rainha Eleni continuou a tratar-me bem, e a aproveitar meus conhecimentos sobre a Europa e sobre as terras dos mouros.

… Os etíopes, enfim, deram-me as maiores honras, como os senhores podem ver. Mas por lá suas razões não me deixaram mais sair daqui. Recebi a mão de uma nobre dama da corte, tive aqui meus filhos, meus netos… Senhores: a esta altura, por que razão haveria de sair?

… Gostaria apenas de passar tudo o que sei ao novo rei…

— Dom Manuel…

— … pra que ele nos envie reforços. Os mouros de Harar têm nos ameaçado gravemente. Há onze anos a rainha mandou uma embaixada a Portugal, mas ainda não tivemos resposta. Agora os senhores dizem que uma embaixada de lá está para chegar…

— A qualquer momento.

— Louvado seja Deus!

Essa conversa deixou nossos amigos pensativos sobre como os homens vivem invocando Deus em benefício de seus interesses parciais, sem entender que, como pai de toda a humanidade, Ele não toma partido de um ou de outro irmão, mas quer que todos vivam em paz… A esta altura já tinham visto pelo outro lado as barbaridades que os portugueses cometeriam em sua missão “cristã”, acreditando mesmo que isso agradava a Deus… Túlio suspirou e disse:

— Será que um dia os homens vão entender?

Não foi preciso explicar. Todos tinham pensado a mesma coisa.

PARA INTERESSADOS EM APROFUNDAMENTO
(Cap. 34 e 35)

Covilhã: Há divergências consideráveis entre as enciclopédias consultadas. O quadro oferecido pela Britannica não só parece mais consistente, como também é de longe mais interessante para nossos fins. As datas foram complementadas a partir de Costa e Silva, pág. 587. Observe-se que o nome é registrado com diversas variantes: Pero/Pedro, da/de, Covilhã, Covilham, Covilhão.

Descoberta antes de Cabral: Um artigo assinado por Mauro M. dos Prazeres na revista “Limite” de jan. 94 faz um interessante apanhado sobre o assunto, referindo-se a historiadores como Armando Cortesão, Jaime Cortesão e Assis Cintra.

Francisco Pinto Cabral, em obra não consultada (O Português Salvador Fernandes Zarco, Ed.Thesaurus, Brasília, 1994) defende a presença do português Diogo de Teive na América em 1452.

Quanto à presença africana na América pré-colombiana, tem sido investigada há mais de cem anos.  Em 1976 Van Sertima publicou um vasto apanhado a respeito, They Came Before Columbus (Eles Vieram Antes de Colombo). Infelizmente, na redação do presente livro pudemos contar apenas com a resenha desse trabalho por E. L. Nascimento.

Padre Francisco Álvares: Membro da delegação que encontrou Covilhã na Etiópia em 1520, escreveu o primeiro relato ocidental detalhado sobre essas região: a Verdadeira Informação das Terras do Preste João.

[1]Na época os europeus chamavam “mouros”  aos muçulmanos em geral, não só ao povo do Noroeste da África como seria mais certo.

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36: endjera e o mistério da arca

Nesse momento foi anunciada a endjera. Dirigiram-se todos a lavar as mãos – os da casa guiando os visitantes -, e em seguida foi trazido um turíbulo queimando incenso. A mesa e em torno foram defumados, o turíbulo colocado do lado de fora da porta principal, e aí se disse uma oração em gueez. Só então foi colocada na mesa uma grande bandeja contendo a endjera e o uót.

— A palavra endjera é como “pão nosso de cada dia” — explicou o filho mais velho de Covilhã: — Se refere a este pão, mas além disso significa “comer” ou “comida” em geral.

Tratava-se de um “pão em folhas”, como panquecas ou chapátis. Cada pessoa pegava sua porção de uót, um guizado temperadíssimo, com a própria endjera, direto da bandeja central.

— O uót pode ser de carne de vaca ou de carneiro, como este aqui — explicou a esposa de Pero. — O segredo está na mistura de pimentas e outras especiarias.

A boca era refrescada com goles de suha, uma espécie de cerveja caseira, à base de cevada. Conversas disto e daquilo rolavam, despreocupadas, em puro clima de confraternização.

Foi apenas depois de terminada a refeição e as mãos lavadas de novo, que Cristiano tomou a iniciativa:

— Senhor Pero, o senhor ficou de nos contar o que sabe sobre a Arca da Aliança… Estamos curiosos.

— Ah sim! É claro.

… Como os senhores sabem, na história bíblica a Arca era uma caixa de madeira de acácia, revestida de ouro, construída baixo instruções divinas expressas. Foi lá que Moisés guardou as “tábuas” de pedra contendo a lei dada por Deus aos hebreus, ou povo de Israel. Era o sinal da presença de Deus entre o povo, e por séculos foi guardada na “tenda da reunião”, até que Salomão construiu o grande templo de Jerusalém, transferindo a arca para lá.

… Pois bem, existe aqui na Etiópia um livro chamado “A Glória dos Reis” (Kebra Negast), que conta a seguinte história:

Em tempos antigos os etíopes eram governados apenas por rainhas, escolhidas entre donzelas, as quais ficavam proibidas de casar. Tal era a situação de Magda, Rainha de Sabá, que reinava a partir de uma aldeia próxima ao local da futura Aksum.[1]

A rainha ouviu falar da sabedoria de Salomão e apaixonou-se por ele de coração. Decidiu visitá-lo e partiu para Jerusalém, levando riquíssimos presentes, e lá ficou por sete meses.

Quando estava para partir, Salomão teve o sentimento de que talvez o Senhor lhe tivesse trazido aquela mulher cheia de beleza e inteligência para que tivesse um filho dela. Devido à antiga interdição abissínia, Salomão teve de lançar mão de vários estratagemas, mas enfim a rainha concordou.

Nessa noite, Salomão teve um sonho: um Sol resplandescente, que iluminava a terra de Israel, se deslocava para a Etiópia, e ficava lá para sempre.

Pois bem: a rainha se foi, e lhe nasceu um menino que recebeu o nome de Menelik. Quando este cresceu, quis conhecer e aprender do pai, e a rainha o mandou a Jerusalém. Junto foi  o pedido de que Salomão sagrasse Menelik, a fim de que os etíopes pudesse enfim ter um rei homem.

O rei hebreu concordou, e quando chegou a hora de o jovem partir, ordenou aos nobres de Israel que mandassem seus filhos mais velhos com Menelik para a Etiópia, a constituir sua corte.

Acontece que esses jovens não podiam suportar a idéia de viver longe da Arca da Aliança, a fonte da força e inspiração de Israel. Como a viagem era inevitável, decidiram que levariam a Arca consigo, sem contar nada a Menelik.

E era essa mesmo a vontade do Senhor, pois a viagem transcorreu de milagre em milagre: os carros e animais voavam, fazendo em um dia o percurso de treze, passando por sobre o mar que os saudava com ondas alegres, e assim por diante. Salomão, mesmo entristecido, teve que aceitar que o Senhor tinha escolhido uma nova terra, a terra abissínia ou etíope.

— Enfim — concluiu Pero de Covilhã — se é verdade não sei, mas os etíopes dizem ser essa o origem dos seus reis e da arca que está guardada em Mariam Tsion.

[1] Este tipo de história costuma conter fatos mesclados com símbolos e mitos reciclados de várias fontes. Aqui “Sabá” não fica na Península Arábica mas no próprio continente africano. Quanto ao nome da rainha, ver rodapé no cap. 32.

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37: outra história da arca

— Pelo que eu tenho estudado — interveio o Dr. Guerreiro — essa pode ser uma explicação fantasiosa de um acontecimento verdadeiro.

Todos se voltaram pra ouvir:

— Parece que esse livro, o Kebra Negast, só foi escrito em 1300 e pouco, quando os reis precisavam reforçar sua autoridade. No entanto a devoção à Arca da Aliança existe no país desde há muito, muito tempo.

… Naturalmente os estudiosos ocidentais sempre consideraram a arca de Mariam Tsion uma imitação, e a história toda como superstição. Mas, por outro lado… a verdadeira arca de fato sumiu de Jerusalém, e ninguém sabe se ainda existe ou onde está. Isso até deu origem a filmes de aventura como “Caçadores da Arca Perdida”.

… Em 1992 um pesquisador inglês publicará os resultados de cinco anos de andanças e pesquisas, dizendo que a arca de Mariam Tsion é a verdadeira. No século XX estará numa capela especial mandada construir por Hailé Selassié, sem interromper a tradição de que apenas um sacerdote vivo, o Guardião da Arca, pode vê-la.

— Mas como veio parar aqui?

— Segundo esse senhor Graham Hancock, quando lá por 650 aC o rei hebreu Manassés introduziu cultos a outros deuses no templo de Jerusalém, sacerdotes zelosos teriam levado a arca para um templo construído pela comunidade judaica na ilha de Elefantine, no Egito.

— Conhecemos essa ilha!

— E esse templo de fato existiu. Uns 200 anos mais tarde, porém, essa comunidade teria se retirado para o Lago Tana, fonte do Nilo Azul…

— Conhecemos esse lago!!!

— … contruindo outro templo na Ilha do Perdão. Ora, sabe-se que a região ao norte do Lago Tana sempre concentrou a maioria dos falachas, negros seguidores do judaísmo, que existem ainda no século XX. Os falachas não possuem os livros mais recentes do judaísmo, como o Talmud, o que prova a antigüidade da sua tradição.

… Além disso, provavelmente é verdadeira a história de que uma rainha de Sabá foi visitar Salomão, e mesmo que ela vivesse lá no Iêmen e não em Aksum, o intercâmbio cultural entre essas duas regiões era forte. Alguns autores creem que Sabá, nessa época, tinha domínios desde o Egito até a Índia – mas mesmo se não for assim, é fato seguro que havia ligação cultural entre a Etiópia e Israel pelos dois lados: o kushita (do Nilo) e o sabeano.

… Assim, quando no ano 341 dois jovens cristãos vieram parar aqui, o conhecimento do Antigo Testamento era bastante amplo na sociedade etíope, que não teve dificuldade em entender a linguagem da nova fé. Muito rapidamente se formou uma Igreja Etíope  que – agora segundo o Sr. Hancock – teria “herdado” a arca da comunidade da Ilha do Perdão, levando-a para a igreja de Mariam Tsion.

— E esses dois jovens cristãos? — perguntou alguém.

— São os irmãos Frumêncio e Edésio — interveio Pero de Covilhã. — Aqui a história deles é tão conhecida como a dos apóstolos Pedro ou Paulo na igreja do Ocidente.

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38: história de Frumêncio e Edésio

— Frumêncio e Edésio eram dois irmãos da cidade de Tiro. — Desta vez era o filho mais velho de Covilhã quem tomava a iniciativa de contar. — Eram jovens e cristãos, o que naquela época não era coisa corriqueira, mas indicava coragem: naquela época os romanos mandavam em todo o Mediterrâneo, até lá na Palestina, e fazia poucos anos que haviam parado de perseguir os cristãos .

… No ano 341 os dois embarcaram em um navio para as Índias,, junto com seu mestre, o filósofo Merópius. Edésio era meninote, Frumêncio um pouco mais velho. A viagem de ida correu sem problemas. Na volta, porém, havia uma situação de conflito entre a Etiópia e Roma devido à quebra de acordos, e o navio foi atacado ao fundear em um porto do Mar Vermelho. Merópius e todos os outros foram mortos em combate. Edésio e Frumêncio, únicos a escapar, foram encontrados mais tarde estudando embaixo de uma árvore, e trazidos como escravos ao neguz, ou seja, o rei de Aksum.

… Pouco a pouco o imperador foi reparando que os dois jovens escravos brancos tinham grande cultura e que eram dignos de confiança. Edésio passou a servidor de vinho real…

— Isso é que é confiança!…

— … e Frumêncio a encarregado da correspondência e tesoureiro.

— É a história do avô de Púchkin em negativo! — observou Túlio.[1]

— Quando o rei morreu, a rainha regente deu liberdade aos irmãos, mas pediu que permanecessem na corte colaborando na educação dos príncipes.

— Era o primeiro contato da Etiópia com a cultura do Mediterrâneo?

— De modo nenhum. A língua grega era comum na corte já bem antes de Cristo.

… Pois bem: os irmãos aproveitaram a oportunidade para difundir e defender o cristianismo, que a essa altura já existia entre o povo. Quando chegavam mercadores cristãos à corte, Frumêncio pedia ajuda para as comunidades locais.

… Quando o príncipe Ezana atingiu a maioridade e tornou-se neguz os irmãos pediram para regressar à sua terra. Edésio terminou dirigindo a comunidade cristã de Tiro.

— Foi lá — complementou o Dr. Guerreiro — que Edésio encontrou o escritor romano Rufino, através de quem a história ficou conhecida no Ocidente.

— Já Frumêncio foi a Alexandria pedir ao patriarca Atanásio que mandasse um supervisor oficial para os cristãos etíopes[2]. Atanásio consagrou o próprio Frumêncio, que regressou à Etiópia e logo batizou a família real. Pouco tempo depois podia-se ver o símbolo da cruz nas moedas de ouro do Reino de Aksum.

— É bom lembrar que mal fazia 20 anos que o cristianismo tinha sido admitido por Roma! — lembrou o Dr. Guerreiro.

A esposa de Pero de Covilhã acrescentou:

— Pouco mais tarde vieram nove monges sírios que levaram o cristianismo além de Aksum, ganhando a admiração do povo pela vida de trabalho e modéstia que levavam nos mosteiros que fundavam pelo interior. São conhecidos como Os Nove Santos, enquanto Frumêncio é chamado Abá Salamá, ou seja, Pai da Paz.

Pero concluiu:

— Foi assim, enfim, que surgiu aqui no seio da África um dos primeiros países cristãos do mundo.

… Mas, a propósito — lembrou Covilhã — os senhores estiveram em Lalibela?

— Ainda não.

— Pois precisam ir. Não sei se em algum lugar do mundo a arquitetura cristã realizou obras tão exóticas.

— É de fato nosso próximo destino — interveio Idriss. — Temos prevista lá uma reunião geral. Sr. Pero, a hospitalidade de vocês está maravilhosa, mas precisamos seguir…

PARA INTERESSADOS EM APROFUNDAMENTO
(Cap. 36 a 38)

Endjera: Baseamo-nos no depoimento da advogada paulista Orlanda Campos Gentile, A Etiópia que Eu Vi, e parcialmente em Pankhurst.

Arca da Aliança: O trecho bíblico da história se encontra em Êxodo cap. 24, 25 e seguintes, e em I Reis 8. O conteúdo da lenda relatada no Kebra Negast encontra-se em Costa e Silva cap. 6, incluindo fragmentos da transcrição em português seiscentista pelo jesuíta Pero Pais. A hipótese moderna de seu deslocamento para a Etiópia é defendida por Graham Hancock a partir de cinco anos de pesquisas de campo (ver Bibliografia).

Posicionamento da Etiópia na tradição judaico-cristã: O Kebra Negast pode até só ter sido posto no papel depois de 1300 dC (segundo os autores seguidos por Costa e Silva), mas seria pouco provável que sua simbologia não refletisse um sentimento real da cultura etíope em relação à corrente religiosa judaico-cristã. Em nós ocidentais o primeiro contato com esse mythos provoca não raro a impressão de uma apropriação indébita e espantosamente sem cerimônia da tradição alheia. Isso apenas revela, no entanto, o quanto de preconceito ainda pode jazer oculto em nós.

Cabe lembrar que 350 anos depois de Salomão Jerusalém terá seu templo destruído e sua população escravizada. A independência judaica será parcialmente restaurada em algumas ocasiões, porém desde 135 dC, com a interdição total de Jerusalém aos judeus pelos romanos, não haverá nem sombra de estado judaico na Palestina até o século XX. A simples lembrança desse fundo histórico pode nos ajudar a ver o mythos com uma perspepctiva mais conseqüente.

Lembre-se ainda a história do batismo de um alto funcionário de “Candace, rainha da Etiópia”, em de Atos 8:26-39. Na época a palavra Etiópia designava Kush, sendo “candace” ou “kentake” o título da soberana. À parte o fato de que Kush é uma das fontes da “nova Etiópia”, Nilo Azul acima, salientamos o detalhe de que “o etíope tinha vindo a Jerusalém para adorar”, claro atestado do grau de presença da fé javista África adentro (sem nem falar aqui de suas possíveis origens africanas, tema tocado no cap. 23).

Não há exagero, portanto, quando a cultura etíope se comporta como absolutamente “de casa” no contexto judaico-cristão. Existe de fato um entranhamento desde as origens, e sem dúvida maior que o de qualquer região européia!

Frumêncio e Edésio: Todas as fontes, inclusive o Dicionário dos Santos de Donald Attwater, remetem a Rufino, escritor cristão romano (ca. 345-410), que diz ter ouvido o relato da boca do próprio Edésio, em Tiro. Naturalmente os nomes estão latinizados. Para Frumêncio, Costa e Silva menciona também as versões Frémnatos ou Fremonatos, que soam gregas. Alguns detalhes importantes da história foram encontrados somente em Pankhurst.

Rei Ezana: Os irmãos Ezana e Sezana (She’azana) parecem ser os mesmos Abraha (Abrá) e Atsbaha (Asbá) de outros documentos. O uso de diferentes nomes em diferentes fases da vida é comum entre os monarcas etíopes, como podemos ver ainda em Tafári / Hailé Selassié.

Relações Etiópia-Roma: Segundo o historiador Procópio, Justiniano (482-565), imperador de Bizâncio, tinha trato com o neguz para que os etíopes lhe comprassem na Índia grandes quantidades de seda da China, evitando que os persas açambarcassem o mercado. Apesar de esse dado não ter cabido em nossa história por razões cronológicas, parece-nos digno de menção.

[1]Cap. 10.

[2]Em grego super-visor se diz epí-skopos, e daí saiu a palavra bispo.

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39: mãe do trigo passa fome

Logo após a previsível sessão de despedidas viram-se de novo voando sobre a infinita sucessão de vales. Túlio reparou desta vez na grande quantidade de plantações, inclusive nos altos terraços das encostas.

— A Etiópia — falou Idriss — é uma das terras que merecem o nome de “mães da agricultura” no planeta.

— Mas como, Idriss? A gente está acostumado a ver o nome Etiópia como sinônimo de fome

— Pra ver as voltas que o mundo dá! Nos anos 80 do século XX houve de fato grande fome na Etiópia devido à coincidência da instabilidade política com uma terrível seca.

… O mundo todo resmungou pra mandar ajuda, como se a causa fosse “a incompetência desses africanos”. Na verdade a agricultura tradicional etíope tem muito a ensinar ao mundo ainda hoje, especialmente quanto à preservação de linhagens de plantas. Caso conhecessem melhor o assunto, os que resmungaram entenderiam que a tal ajuda não passava de uma retribuição, pois grande parte das plantas alimentares deste mundo saiu daqui.

— Quê plantas, por exemplo?

— Olhe, não posso dizer muito pois não sou especialista, mas começa pela bebida mais popular do mundo, o café, e segue com um dos temperos mais populares: a mostarda. Já imaginou as lanchonetes e bares deste mundo sem essas duas coisas?

… Mas tem mais: tem o melão e a melancia, o quiabo e o agrião. Tem o feijão-guandu, um dos melhores alimentos tropicais para homens e animais, e tem o gergelim, que além de delicioso fornece um dos óleos mais saudáveis que existem. Tem diversos tipos de cará, que parecem batata mas são mais saudáveis, tem cereais como o sorgo e o painço… e tem nada menos que o chamado rei dos cereais: o trigo, de modo que a cada café com pão vocês deveriam agradecer à Etiópia.

— O trigo!? Não, não é possível.

— Existem muitas variedades de trigo, e é verdade que muitas vêm de outras regiões, mas algumas das principais variedades têm seu lar original aqui nestas montanhas e vales, como os especialistas demonstraram.

— Pensei que já tivesse tido todas as surpresas desta viagem!

— Pois estou certo que ainda terá muitas mais. Só por exemplo: não é apenas comida que o mundo deve à agricultura etíope, mas roupa também: foi daqui que saíram as espécies mais importantes da principal fibra têxtil do mundo: o algodão. Assim não é só a cada café com pão que vocês deveriam lembrar da Etiópia, mas também a cada vez que vestem camiseta e jeans.

 

Idrissa olhava a paisagem enquanto falava e conduzia o tapete. Nesse momento porém se voltou para Túlio e flagrou uns olhos molhados, a ponto de escorrer.

— Ué, Túlio, o que foi?

— É difícil de explicar, Idriss. No que você falou do algodão me veio a sensação de que o toque da camiseta era uma carícia, um abraço de mãe… Aí lembrei de um dia em que ouvi um pessoal fazendo piadas com a fome da Etiópia, um pessoal que não tem idéia nem do que é a Etiópia, nem do que é fome… O engraçado é que a lembrança não me deu raiva, deu é uma espécie de tristeza lá no fundo, difícil de explicar…

— Eu entendo, meu amigo. Infelizmente não dá pra falar deste assunto sem tristeza.

… Veja: a agricultura aqui tem milhares de anos, e alguns desses terraços já têm quase isso; mas, como vocês vêem, muitos deles já estão abandonados. No século XX a maior parte terá interesse apenas arqueológico, e não agrícola. Em outras palavras, serão ruínas.

Idriss passou de súbito a mão nos fios dourados do tapete e a imagem estremeceu. Um instante depois anunciou:

— Século XX.

Num instante a paisagem tinha ficado mais seca, mais maltratada, e havia muitíssimo menos plantações.

— A decadência da agricultura é um fenômeno mundial. A indústria tomou seu lugar no centro da economia. Antes, quase tudo o que os homens queriam comprar vinha da terra; hoje existem pra se desejar milhões de coisas feitas por máquinas, e os homens deixam muito pouco pra sustentar quem lhes dá de comer.

… Lugares puramente agrícolas se tornaram marginais; reinos importantes viraram escanteio do mundo. Isso tudo é muito triste, e além disso é loucura: as pessoas nunca passarão a comer plástico!

Por alguns instantes ficaram todos pensativos, mas aí Idrissa anunciou:

— Chegamos a Lalibela.

PARA INTERESSADOS EM APROFUNDAMENTO

Plantas originárias da Etiópia: Os passos decisivos do rastreamento da origem das plantas agrícolas foram dados pelo botânico russo Vavilov, que identificou os centros de diversidade genética que hoje levam seu nome, sendo a Etiópia um dos mais importantes. Os dados acima provêm de Pat Roy Mooney e em parte de Purseglove. Os carás aqui referidos são as dioscoreáceas, geralmente trepadeiras. Embora em inglês sejam chamados de yams não devem ser confundidos com o inhame, taioba etc. (aráceas).

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40: Discretas catedrais

— Lalibela? Onde?!

— Vocês já vão ver. Lalibela foi capital, com o nome de Roha, na dinastia zagüê. Depois virou uma vilinha de nada. Só sobram as igrejas.

— Mas cadê as igrejas, Idriss? Não vejo nada!

— Vejam.

Idriss chegou o tapete bem na beirinha da garganta que corta o planalto.

— Hã?!?

Ao nível do chão, abraçado pelo morro mas separado deste por uma funda vala, estava um terraço em forma de cruz. O piso do terraço, de uma pedra só, era todo trabalhado em relevo.

Só quando Idriss manobrou e desceu pra dentro do vale é que começaram a entender: aquele terraço era o teto de uma igreja enfiada no morro.

tulio10lalibela

— Esta é Beit Giorgis (Casa de São Jorge), apenas uma entre onze igrejas. O mais interessante delas vocês ainda não perceberam: é a feitura. Vejam:

… Esse bloco inteiro foi separado do morro por uma vala. Em seguida começou a ser desbastado por fora e cavocado por dentro, até ser uma casca oca. Aí foram abertas as janelas e esculpidos na rocha os motivos decorativos.

… Também por dentro, tudo é esculpido da mesma rocha: as colunas, os arcos, as imagens de santos… Toda a igreja, enfim, foi feita de uma pedra só.

 

Por um bom tempo não havia palavras, só queixos caídos. Andavam, admiravam detalhes e mal podiam acreditar. Finalmente Cristiano falou:

— Mais inacreditável ainda que a construção, é o fato de isto não ser mais conhecido. Lalibela tinha que estar em todos os livros de arquitetura e artes plásticas do mundo! Como é que pode?

— Realmente não dá pra entender. Quem sabe seja porque não combina com a imagem de primitiva que a África é forçada a usar…

 

As outras dez igrejas ficavam agrupadas no vale, seis de um lado, quatro do outro, separadas por um rio batizado de Jordão, a exemplo do da Bíblia. Algumas eram maiores que Beit Giorgis, e com fachadas mais decoradas.

— O que é notável em Beit Giorgis é sua forma de cruz.

O vale fervilhava de religiosos. Alguns andavam com mulher e crianças, com todo o jeito de família.

— ???

— Nas igrejas ortodoxas os monges não podem casar, mas os padres comuns podem — esclareceu o Dr. Guerreiro.

Pediram informação a um deles:

— Senhor, por favor, como é o nome de cada uma dessas igrejas?

— Pois não: estas aqui são Beit Emmanuel, Beit Mercúrios, Abba Líbanos, Gabriel-Rufael… Aquelas são Beit Mariam, Beit Golgotha-Mikael e Beit Marcam. Aquela é Medhane Alem (Salvador do Mundo), a maior: tem 36 metros de comprimento e 12 de altura (como 4 andares).

Nesse momento alguém chamou o monge e ficaram sem saber o nome das outras duas. Idriss completou com o que sabia:

— A tradição diz que foram construídas em 24 anos, com os anjos ajudando de noite – mas não é impossível que tenha demorado mais.

… O rei Lalibela, que acabou dando nome ao lugar, viveu em 1200 e pouco. Ou seja, estas igrejas foram construídas ao mesmo tempo que as catedrais góticas da Europa. Parece que o espírito daqueles anos era mesmo o de construir igrejas de pedra, nos mais diversos lugares.

— Com a diferença — comentou Cristiano — de que aquelas aparecem, e estas parecem ter sido feitas pra não aparecer… Quase um símbolo do que ia acontecer com a Europa e a África nos séculos seguintes…

Mais uma vez o comentário deixou o grupo pensativo… Aí Idrissa chamou:

— Vamos a um descampado aqui perto. Temos um encontro geral.

De fato, enquanto andavam pelo vale, vários outros tapetes e grupos haviam chegado – mas pra tristeza de Túlio desta vez o grupo de Ayoká foi o último a chegar.

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41: A Mãe fala nos jardins de Lalibela

O lugar era apenas um campinho com uma espécie de estrado armado e decorado com panos. Por um bom tempo descansaram batendo papos informais, esparramados pela grama. Tudo estava simples e agradável, ninguém parecia precisar mais de nada – estarem ali juntos bastava.

De repente, um zum-zum. No estrado, ao mesmo tempo simples e imponente, havia surgido a Mãe.

Não haviam estado com ela desde o discurso de abertura na Universidade em Tombúctu – ou melhor: segundo o que ela havia dito (que era a própria África), tinham estado com ela o tempo todo, mas não nessa forma visível a um só olhar, capaz de pronunciar palavras humanas.

— Amigos — começou a Mãe — boa parte do programa que preparamos pra este congresso já foi cumprido. Depois de idas e vindas pelo lado oriental do continente, voaremos de novo para o lado ocidental, desta vez pro colo onde deságua o rio Níger, o Golfo da Guiné. Faremos aí uma ou outra visita, e logo teremos o nosso encerramento, depois do qual cada um de vocês voltará lá pra onde tem suas missões a cumprir.

… Neste momento quero chamar a atenção de vocês pra uma coisa que estamos procurando mostrar com nosso programa: a riqueza e variedade de culturas deste continente.

… Visitamos o Egito, que criou suas obras com uma ciência que nossa memória mal alcança, e dava para as forças sagradas nomes como Osíris, Ísis, Hórus, Amon. Visitamos cidades e reinos que exercitaram sua criatividade dentro das regras de vida ensinadas por Muhamad, e outros que criaram sob a inspiração dos ensinos de Moisés e de Jesus Cristo. E ainda passaremos por terras onde as idéias do que é sagrado são diferentes, onde os homens se inspiram em nomes como Xangô e Obatalá, Oxum e Iemodjá.[1]

… Alguns podem ser tentados a perguntar: onde está a verdadeira África?

… Antes que sejam tentados a dizer: “a verdadeira África é aqui”, ou “a verdadeira África é ali”, aqui estou eu pra dizer: a verdadeira África pode ser encontrada se vocês olharem todos esses rostos em conjunto – mas jamais será encontrada se olharem cada um deles sozinho.

… A cultura de um povo é sua forma particular de ver o Universo e se relacionar com ele. Como é possível então (vocês podem perguntar) que as culturas sejam diferentes se o Universo é um só?

… Ora, isso seria o mesmo que dizer: como é possível que as estrelas sejam diferentes se o Universo é um só?, ou como é possível que as flores sejam diferentes se o Universo é um só?

… É simples, meus amigos: Deus ama a variedade. Ele criou diferentes tipos de flores porque quer um jardim colorido, e jamais vai aprovar um jardineiro que diga “a flor certa é só esta, vamos acabar com todas as outras”.

… E se a flor mesma quer dominar sozinha, matando as outras, nós chamamos essa flor de uma praga.

… Mesmo assim, não é certo acabar com ela. No caso de um jardim, a gente usa técnicas pra não deixar aquela flor se espalhar demais, já que a natureza da flor não muda. Já no caso das culturas e povos é diferente, pois a natureza do ser humano é justamente essa: a de poder mudar e melhorar sempre mais.

… Antigamente o deslocamento dos homens pela Terra era difícil. Os que viviam num lugar tinham pouca chance de se encontrar com os outros. Assim, as pessoas também foram ficando destreinadas de conviver com quem é diferente.

… Hoje o mundo mudou a esse respeito – e a intenção é que tenha mudado pra sempre. Em outras palavras: nunca mais nenhum grupo vai viver isolado.

… Percebem o que isso quer dizer?

— … ???

— Quer dizer que vamos ter que usar a capacidade humana de mudar, e vamos ter que aprender a viver lado a lado com os diferentes, cada um respeitando a diferença do outro. Ou mudamos, ou nos arrebentamos todos até virar pó.

… Agora, vocês podem estar dizendo: “por que é que a Mãe está fazendo esse discurso pra nós? Isso quem precisa ouvir são os brancos!”

… E eu respondo: eles precisam sim, mas não só eles.

… Vejam, filhinhos: como vocês sabem agora, nosso continente já foi mais iluminado que qualquer outro do mundo. E vejam só o tamanho das dores e problemas que ele enfrenta hoje! Não é de deixar perplexo o mais sábio dos homens?

… Cultivem, por favor, essa perplexidade – como preparação para as palavras de despedida que direi a vocês em Abidjan. Até logo, filhinhos meus!

Em uma fração de segundo, já não estava lá. Só as cores vibrantes de suas vestimentas ainda pareceram reverberar um instante no ar. As pessoas foram se encaminhando pros tapetes, serenas mas quietas. A viagem de volta estava pra começar.

PARA INTERESSADOS EM APROFUNDAMENTO
(Cap. 41 e 42)

Religiões: Não há como falar de história cultural sem falar de religião. É previsível porém que muitos vejam nesses trechos uma filosofice excessiva, preferindo que apenas narrássemos, deixando reflexões analíticas de lado.

Antes de mais nada, rejeitamos energicamente uma tal compartimentação do pensar.

Além disso, as objeções discutidas aqui e no próximo capítulo (quanto às diferentes culturas religiosas) são extremamente freqüentes. Escamoteá-lo apenas deixaria um sentimento de ambigüidade e insegurança. Preferimos a política de pegar o touro justo pelos chifres.

Ao não calarmos sobre o assunto, mas ao mesmo tempo não tomarmos partido contra ninguém, corremos o risco de desagradar a todos os partidos… Fazer o quê? Estamos convencidos de que se há pregação necessária neste momento é a do pluralismo e da tolerância; sem isso, nem sobreviveremos para discutir as outras questões.

(Só há uma coisa que não se pode tolerar, e essa é a intolerância, ou numa expressão mais ampla, a opressão, entendida como qualquer tipo de intervenção na liberdade do outro — pois a tolerância que tolera a intolerância é suicida, e não cumpre sua missão).

Lembramos que não apenas estes dois capítulos, mas também o cap. 7, os comentários ao cap. 5, e a nota “Religiões” (Apêndice I) trazem contribuições ao tema.

[1]Transcrevemos o som desses nomes com escrita brasileira, pois a escrita iorubá apresentaria dificuldades para nossos leitores.

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